Duas vacas a menos!
Era uma noite de verão. Fazia um estranho clima chuvoso e
frio. Algo estranho para uma época em que o calor deveria predominar. Eu estava
voltando para casa debaixo dessa forte chuva, tão torrencial que poderia até
ver uma arca passando no horizonte carregando nela dois animais de cada
espécie. Era muita chuva para uma noite só! Dava para ter parcelado essa chuva
toda em 30 noites, sem juros. E eu estava correndo para casa, tentando chegar
lá sem me afogar, quando ouvi uma voz rouca e bem distante. Eu não dei muita
importância e continuei minha corrida. E a voz foi ficando mais forte. Acho que
estou me aproximando da pessoa.
--- Cuidado com o...
Quase deu para ouvir tudo! Eu continuei minha corrida,
tentando esquivar inutilmente do vento e da água. Como se não bastasse, algum
bueiro deve ter entupido com o lixo acumulado e estava formando um rio na
estrada. O asfalto foi sua primeira vítima, pois já dava para ver ele se
dissolvendo como se fosse açúcar no leite. Eu não queria ser sua próxima
vítima. Não queria ser manchete: “Homem se afoga em duto de águas pluviais,
após ser dragado para dentro de um bueiro. Deus me livre de uma tragédia como
essa. Fiz o sinal da cruz enquanto corria e notei que a voz estava ficando mais
nítida. Eu notei uma senhora de idade parada na chuva e consegui, finalmente,
ouvir o que ela estava dizendo:
--- Cuidado com o cachorro!
Eu passei por ela sem dar muita importância, mas fui
surpreendido por ela. Ela agarrou minha mão e me deu um crucifixo estranho, de
um metal lindo de cor prata e com uma ponta bem afiada. Eu me viro para trás e
ela me diz seriamente, me olhando nos olhos:
--- Cuidado com o cachorro! Se ele ficar de pé, você não deverá
lutar, ou morrerá!
Um cachorro ficando em pé? Bípede? Uma cruz de prata na
minha mão? Já vi onde isso vai chegar. Eu, então, acabo sorrindo para a senhora
bondosa, fazendo um gesto de cordialidade com um simples balançar de cabeça, me
curvando e soltei rapidamente minha mão. Eu não queria ficar mais nenhum
momento ali. Sou supersticioso, então, não lancei a cruz fora, mas me
verifiquei se a senhora estava me seguindo. Para minha sorte, ela ficou parada,
na chuva torrencial. Espero que ela não pegue uma gripe. Novamente, eu faço um
sinal com a cruz e continuo minha maratona para chegar em casa e, agora, preocupado
em encontrar um lobisomem pelo caminho não que eu acredite em lendas, mas eu
fiquei assustado, pois meu vizinho teve sete filhas e, agora, conseguiu um
menino, seu oitavo filho, e que completou 13 anos essa semana de lua cheia.
Isso já me deixou arrepiado. E, agora, eu me deparo com uma senhora
desconhecida, na chuva, e ela me entrega uma cruz de prata. Começo a correr ainda
mais rápido, negando aos meus pulmões o descanso merecido. Tudo para não me
deparar com tal ser mitológico, caso realmente exista. O precavido vale por
dois! Não duvidar do sobrenatural pode evitar sustos desnecessários. Ter a
mente aberta é meu lema. Correr para casa é minha missão. Dá-lhe, minhas
pernas! Vamos dar o máximo para chegar em casa!
A corrida compensa e logo vejo a luz da minha casa. Atravesso
o portão como se ele fosse uma ilusão e, logo, consigo alcançar a porta. Enfim
seguro, eu pensei! Pensei errado. Antes de conseguir refazer meu fôlego por
completo, eu começo a ouvir meus cachorros latindo e, estranhamente, um
silêncio vindo do meu curral. Eu crio gado. Sem muita coragem, para falar a
verdade, eu começo a espreitar o quintal pelo cantinho da casa, tentando olhar
para lá sem ser percebido. Eu pego o celular para ligar a lanterna e acabo
vendo que recebi várias mensagens da minha filha que está em casa. Maldição, eu
coloquei o celular no modo silencioso e nem vi que ela estava me mandando
mensagem. Eu leio rapidamente a última mensagem: “Pai, eu estou com medo! Tem
algo no celeiro!”.
Não tem nada que enfureça mais um pai do que um filho seu
estar amedrontado com algo. E, para piorar a situação, eu a vejo pela janela
que dá acesso à sala e a vejo encolhida, com um cobertor acima da cabeça. Ela
me olha e seu olharzinho assustado desperta algo dentro de mim. A paternidade
tem dessas coisas! Basta um filho teu pedir socorro, seu medo some e você é
tomado por um instinto primitivo de proteção à família. A cena dela
encolhidinha na sala fez jorrar tanta adrenalina no meu sangue, que meu medo se
transformou em fúria. Eu acabo me erguendo, ligo a lanterna e vou até o canil.
Ao soltar os meus cães, agora, não sou apenas um pai
defendendo sua amada filha, mas sou, também, um alpha da matilha que vai em
direção ao celeiro. Empunho o crucifixo em uma mão, como se fosse uma adaga,
desligo a luz do celular, que pode denunciar minha presença e pego, na outra
mão, um machado que estava jogado no chão. Eu confio nos meus cães. Se algo se
aproximar, eles darão o aviso, mesmo que eu não veja. A visão daquela senhora
agora começa a passar na minha cabeça e eu peço para que não seja um lobisomem
e se for um lobisomem, que não seja o filho do meu vizinho. Não quero ser
responsável por tragédia entre amigos!
Eu chego até a cerca do curral. Meus cães estão inquietos e
eu não vejo nenhuma movimentação ou som das minhas vacas. O silêncio me deixa
perturbado e eu grito com fúria, na tentativa de assustar o que quer que esteja
ali dentro. Meus cães me acompanham e começa a latir e uivar. Minha filha,
então, me dá uma bela ajuda ao ligar as luzes ao redor do celeiro. De dentro da
casa, nós conseguimos ligar essas luzes por um interruptor na cozinha. Agora
consigo ver melhor o celeiro e o que vejo me impressiona.
Duas das minhas vacas estão no chão. Eu pulo a cerca do
celeiro e abro a porta dele para deixar meus cães entrarem. Eles entram com
cautela, farejando o ambiente e o chão. Eles estão com os pelos arrepiados,
como se fossem atacar alguma coisa que eu ainda não vejo. Eu chego perto de uma
das vacas e a noto sem vida. Observo seu corpo e vejo uma marca de mordida em
sua garganta. Ela parece estar sem sangue. Lobisomens não sugam sangue, então,
tem algo errado. Meus pensamentos são interrompidos com um rosnado vindo do
fundo mais escuro do celeiro. Eu comando os cães para ficarem junto a mim e me
aproximo. Agora, a valentia e a fúria estão somadas com a indignação de ter perdido
duas vacas leiteiras. O prejuízo desse ataque já me causa vontade de dar um
tiro até no filho do meu vizinho. O que eu vejo não é um cachorro, mas parece
algo como um pequeno urso. Pelo que vejo e pelo que vi na vaca, eu não tenho
dúvidas: é um chupa-cabra. E prata funciona nesse bicho? Não precisei nem
responder a isso.
Sem aviso, um vulto se joga em cima do chupa-cabra. Um cão o
ataca e esse cão não é meu e é bem grande. A luta entre eles é feroz e eu só
assisto. Nunca vi tanta agressividade como nesses dois. Nem mesmo uma onça
consegue ser tão mortal em seus golpes como esses dois. São feras lutando com
mordidas e arranhões que fariam um urso tremer. Para minha surpresa, o cão se
coloca em pé! Misericórdia, é um lobisomem atacando um chupa-cabra. Nem um
pescador acreditaria nisso! Ao se colocar em pé, o cão passou de 185cm e sua
postura o fez mais ameaçador. O chupa-cabra parece que está sentindo e está
ferido. Acho que um ser folclórico possui poder contra outro e um é a fraqueza
do outro respectivamente. O chupa-cabra consegue escapar e acaba me deixando
sozinho com o lobisomem. A hora da verdade está se aproximando! Nessa altura da
história, nem estou mais com medo. Estou é boquiaberto com tudo isso. Eu olho
nos olhos dele, não luto e digo o nome do filho do meu vizinho. Isso parece
acalmar o ser sobrenatural um pouco, que, depois, respira fundo e pula atrás do
chupa-cabra. Acho que virou uma luta por território. Se eu pudesse apostar, eu
apostaria no filho do meu vizinho. Agora é minha vez de respirar fundo. Não sei
nem como contar isso para minha filha. Depois eu penso em algo. Agora, vou
colocar meus cães para dentro de casa e vou tentar dormir. Amanhã, vou visitar
meu vizinho e ver como está o filho dele. Espero que ele tenha vencido! Pelo
menos, esse crucifixo é bonito. Vou começar a carregar ele comigo! Agora, essa
fazenda será bem diferente! Deus tenha misericórdia. Vou beber e dormir! Beber
e dormir!