O que é essa maldição? Eu penso comigo mesmo como poderia ter sido tão feliz e, ao mesmo tempo, tão cruelmente torturado. Quando eu a vi passar pelos campos do castelo, me impressionei com a beleza que deixava o próprio Sol envergonhado. Quando estava de vigia na torre, a via em confidências com a Lua. Os pássaros, corvos e corujas pareciam render-lhe graças.
Em um dia de outono, minha espada se mostrou útil. Atacada enquanto caminhava pela estrada real, seus guarda-costas, eunucos, rapidamente foram derrotados por uma vil criatura. Eles não tinham o que era preciso para defendê-la. Eu a vi por acaso, quando retornava de meu treino matinal com a espada, ao lado de meu fiel pai. Meu pai, guarda real de confiança de um nobre conde, foi o primeiro a pressentir o perigo e a se dispor a ajudar. Eu não tinha tanto fôlego, mesmo sendo mais jovem, pois ele defendia a nobreza com um espírito incorruptível. Para ele, os nobres eram passageiros, mas a realeza parecia ser um estado de espírito permanente, quase uma filosofia que eu não podia entender.
Pois ele entendia. A vil criatura, horrenda, com olhos que me fizeram tremer e duvidar da fé de meu pai, estava sob uma gentil e linda donzela, raptada em sua inocência por um cruel serviçal das trevas. Defendê-la era meu propósito. Derrotar a criatura era o objetivo de meu pai. Meu pai atacou o Leviatã com uma bravura que me fez inveja. Arrastei, sem a menor polidez, a donzela para longe da criatura. Os olhos da princesa estavam cheios de lágrimas. Ela estava em choque por ter ficado a milímetros de dentes tão afiados. Seu lindo pescoço, branco como a neve, e com a pele tão lisa e suave, mostrava as marcas vermelhas de dentes.
Meu bravo pai, honrando o símbolo da guarda real, atacava a besta de maneira selvagem e, ao mesmo tempo, com destreza e frieza de coração. Eu poderia ser igual a ele? Poderia enfrentar a horrenda fera, maior que um leão, apenas com minha espada e o brasão de minha casa? Pois eu saberia disso naquele momento. Meu pai lançou um rápido ataque pela esquerda e feriu o dorso do animal. Com a lâmina fincada nas costas, a criatura quebrou-lhe a espada com a força dos retesados músculos da coluna. Meu honrado progenitor ainda tentou sacar uma adaga, mas a cauda horrenda o lançou ao chão. Eu ouvi ossos se quebrarem. Agora, a fera me olhava como se tivesse um único propósito: matar-me. Assustado, olhei para a donzela. “Desculpe-me, mas eu fugirei e buscarei ajuda”, pensei. Olhei para ela e vi pureza, medo e desespero. Queria livrar-me do fardo. Queria largar a espada e gritar por socorro. Mas, eu duvido, meus caros leitores, que tais palavras de covardia pudessem ser pronunciadas diante de um anjo tão encantador em situação de tamanho desespero. Não podia falar-lhe palavras tão vis. Coloquei-me entre a mulher e o monstro. Um gesto insensato, cego e estúpido. Apaixonado!
Sempre sonhara com um momento como este. Eu, um bravo guerreiro em armadura dourada, em cima de um grande e poderoso corcel, desafiando todas as trevas em nome do amor. Uma história que se repete na mente de cada jovem. Mas a realidade é outra: estava semi-nu, apenas com as calças da guarda real e as botas de couro empoeiradas. Eu estava suando e tremendo como um covarde. O monstro tinha quase o dobro de meu tamanho e o triplo da sede de sangue. A dama estava aterrorizada com a infernal criatura que se aproximava lentamente. O bestial me analisava para ver em quantas mordidas poderia me abater. Talvez pensasse em provar de meu sangue e sentir o gosto da covardia.
Apesar de tudo isso, eu não me afastei. O monstro avançava lentamente e eu permanecia parado. Minhas pernas queriam se mover para trás, mas meu coração queria ir para frente. O resultado disso é que eu não saía do lugar. Eu decidi. Vi meu pai agonizando, vi a jovem e bela futura rainha caída aos pés de um carvalho. Seu vestido estava rasgado e, por um breve momento, pude ver sua intimidade. A fúria tomou conta de mim e eu me atirei contra a criatura. Acho que a soma de fúria e remorso me lançou em direção à boca do bestial. Minha espada reluzia como um pequeno raio que cortava o ar. Eu podia jurar que o vento gemia de dor. O animal se esquivava com paciência, esperando a vez de atacar e me reduzir a pó. A batalha prosseguia e o animal levava imensa vantagem em reflexo, força e velocidade. Por duas vezes, ele rasgou meu peito. Uma vez, de forma mais grave, ele conseguiu ferir minhas costas. Mas o que eu tinha de vantagem era a perseverança e a inteligência. Atirei minha espada longe. Eu mencionei inteligência? E esperei, convidando a criatura a realizar-se com minha jugular. Ela atacaria sem pestanejar. Eu poderia dizer que planejava pular sobre a criatura e usar a espada de meu pai, que ainda estava fincada nas costas do animal, mas, apesar de ter pensado nisso, não era esse o meu plano.
A criatura avançou. E eu permaneci imóvel. A princesa parou de respirar, sufocada pela tensão. Eu sorri maquiavelicamente. O animal agarrou-me com suas garras para garantir que eu não fugiria. Não era minha intenção fugir. E, de súbito, senti a pressão sufocar minha garganta e um hálito quente apertando minha jugular. Lentamente, senti minha carne esfacelar. O animal já preparava o rugido de vitória. Eu mencionei mesmo inteligência? Era a hora!
— Officium meum faciam!!!
Como simples palavras podem mudar toda uma situação difícil! Meu sangue se fez fogo e minha carne se fez bronze. As garras do animal se quebraram, seus dentes derreteram e sua língua queimou. Palavras que na boca de outros nada fariam, porém, em mim, de acordo com um sacerdote cristão, eram um dom de Deus que expandia meu espírito acima do poder da carne. Imaginaram a cena? Meu espírito rompendo os limites da carne. O animal queimando vivo e a princesa desmaiando. Agora sim, aproveitei a agonia de meu inimigo e retirei a espada de meu pai. Com a ajuda de minha espada, acabei com o sofrimento do animal. A batalha cessara e a vitória era minha, unicamente graças a Deus. Fui em direção ao meu pai.
— Pai! Está bem? — perguntei-lhe.
— A princesa... — ele apontou para a doce donzela caída.
Eu sabia dessa determinação e me orgulhava dele. Mas será que ele se orgulhava de mim? Um guerreiro que não vence a batalha pela espada, mas pelo subterfúgio de um Dom do Espírito? Esqueci essas dúvidas por um momento e fui ter com a princesa.
— Ilustre princesa, estás bem!? — amparei-a preocupadamente. Somente nesse momento, eu senti o perfume de seus cabelos e o toque macio de seu jovem corpo junto ao meu. Ela estava acordando.
— O que houve? — ela disse de maneira trêmula. — Instantes atrás, tu eras ouro e bronze. Que bruxaria usaste?
Que voz maravilhosa! Se ela me determinasse: “Vai-te depressa e mata-te”! Com esse nobre e belo tom de voz, com certeza eu obedeceria.
— Bruxaria nenhuma, minha princesa. Assim como Sansão tinha força descomunal, o Dom do Espírito me promete expansão espiritual além dos limites da carne. Toda obra das trevas, que o Espírito toca, queima instantaneamente. Bastam três palavras em latim que significam: faça-se meu trabalho e o dom se manifesta.
— Soldado, estás ferido! — ela me surpreende e levanta-se de meu colo. — Deita-te e repousa!
Como ela, em poucos segundos, consegue força para se levantar e tentar cuidar de meus ferimentos? Que princesa faria isso? Sempre escutei histórias sobre princesas lindas e arrogantes. Entretanto, a beleza desta não lhe atinge o coração. Serás inocente? Uma mulher em um coração de jovem? Agora, eu me sinto envergonhado de quase ter fugido e orgulhoso de ter vencido um mal que tentara apagar essa divina chama da Terra. Comecei a ficar envergonhado e ela nem sabe o porquê. Não consigo tirar da cabeça o meu pecado contra este anjo. Olhei a intimidade da princesa. Que pecado! Desse dia em diante, eu jurei usar minha espada para protegê-la. Fui designado para ser do exército real, graças a meu pai, e sempre a protegerei com minha espada e meu amor."